sexta-feira, 24 de novembro de 2023

As Sandálias do Pescador (1968): Anthony Quinn, Um Papa Russo em defesa da Paz Mundial, em uma obra profética e datada.




As Sandálias do Pescador (The Shoes of a Fisherman), superprodução da Metro- Goldwyn- Mayer realizada em 1968, oriunda do famoso Best Seller (publicado em 1963) de Morris West (1916-1999), é de certa forma um filme profético. O fato curioso é que o escritor West não fazia vaga ideia de que sua historia se tornaria realidade, pois praticamente previu 15 anos antes a eleição de um Papa vindo de um país comunista em 1978, com a eleição do polonês Karol Wojtyła, o Papa João Paulo II (1920-2005), o primeiro Papa não italiano depois de muitos anos. Depois do Papa polonês, ainda vieram um alemão (Bento XVI) e o atual é um argentino, Papa Francisco.

Kiril Lakota (Anthony Quinn) e seu encontro com o Premier Kamenev (Laurence Olivier). Uma proposta para a paz mundial.
Lakota recebe a incumbência de ser cardeal, com relutância.
Lakota no meio do concílio dos cardeais, e entre eles, o Cardeal Rinaldi, vivido por Vittorio De Sica
Rodado nos famosos estúdios italianos de Cinecitta, em Roma (onde a mesma Metro também filmou os espetaculares épicos Quo Vadis, em 1950, e Ben-Hur, em 1959), em As Sandálias do Pescador, o Papa em questão na obra de West, protagonizado soberbamente por Anthony Quinn (1915-2001) não é polonês e sim ucraniano, Kiril Lakota, outrora um prisioneiro político da antiga União Soviética, sendo enviado a Roma pelo premier soviético Piotr Ilyich Kamenev (Laurence Olivier, 1907-1989), cujo objetivo é influenciar o Vaticano a seu favor, em caso de um conflito com a China. Kiril é nomeado cardeal, e mais tarde, eleito Papa, sucedendo o seu predecessor, o Papa Elder (John Gielgud, 1904-2000). Assim, Kiril Lakota torna-se o primeiro Papa não italiano da História da Igreja. Desde o começo, Kiril demonstra ter consciência do seu papel de pastor e da grande responsabilidade que tem sobre os ombros, já que o Vaticano também é um Estado, mas ao mesmo tempo, tendo conhecido o sofrimento, ele luta para minimizar os sofrimentos de seus fiéis.

O Concílio dos Cardeais, para o conclave do novo Papa.
A surpresa de Kiril Lakota, quando eleito para ser o novo Papa.
O Cardeal Leone (Leo McKern) pergunta ao Cardeal Lakota como será seu nome pontifício. Papa Kiril.
Ocupando-se com a paz mundial, o novo papa consegue evitar um conflito nuclear entre russos e chineses e decide distribuir as riquezas do Vaticano como índole de seus ideais (outra “profecia”. Em 1978, o Papa italiano João Paulo I havia declarado que também distribuiria as riquezas da Igreja entre os países pobres e que investigaria o Banco do Vaticano, após suspeitas de desvios de dinheiro. Seu papado durou apenas 33 dias, sendo encontrado morto em seu quarto a 16 de outubro de 1978. Oficialmente, sua morte constou como ataque cardíaco enquanto dormia, mas há indícios e suspeitas de assassinato por envenenamento. A teoria de conspiração sobre este caso já foi abordada disfarçadamente no filme O Poderoso Chefão, Parte 3, com Raf Vallone no papel de um Papa que faz reminiscência a João Paulo I).

Habemos Papam!!!
O triangulo amoroso do repórter George Faber (David Janssen) entre sua esposa médica (Barbara Jefford) e uma garota italiana, Chiara (Rosemarie Dexter), uma das tramas subjacentes da fita.
George Faber entrevista Kiril Lakota
Mas As Sandálias do Pescador não deixa de ter suas tramas subjacentes. Numa delas, um triangulo amoroso formado por um repórter de TV, George Faber (David Janssen, 1930-1980), sua esposa médica Ruth (Barbara Jefford, 1930-2020), e uma garota italiana, Chiara (Rosemarie Dexter, 1944-2010), uma trama paralela que prejudica em alguns pontos o andamento do tema proposto e que fecha sem solução para o trio. É Faber que faz a cobertura jornalística que fica de guarda na Praça de São Pedro para a eleição do novo Papa, sendo Kiril o eleito. George Faber, através da brilhante narração  de David Janssen, prende o espectador ao dar detalhes de cada item do conclave, incluindo as menções das chaminés e as cores das fumaças que definem a eleição ou não de um Papa. Já Ruth tem ao longo do filme um breve contado com o Papa Kiril  quando este consegue fugir por um momento da Basílica de São Pedro para escapar do protocolo papal e  percorrer as ruas do Vaticano, onde encontra a médica e acabam tratando juntos de um judeu idoso e enfermo.

O Papa Kiril e seu amigo, o padre progressista David Telemond,vivido por Oskar Werner.
Telemond é um padre polêmico, sob investigação do Vaticano. O personagem foi inspirado por Morris West no Padre Teilhard de Chardin.
O Papa Kiril e o enciumado Cardeal Leone, pelo fato de Sua Santidade preferir mais a amizade de Telemond.
Outra linha de argumento trata sobre um padre progressista, David Telemond, vivido por Oskar Werner (1922-1984), que Morris West inspirou-se em Teilhard de Chardin (1881-1955), padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo francês que tentou construir uma visão integradora entre ciência e teologia. O Padre Telemond, cujas avançadas posições teológicas são investigadas pelo Tribunal Pontifício (a Congregação da Doutrina da Fé), tem seus livros proibidos de serem publicados pela Santa Sé. Kiril protege Telemond , ao mesmo tempo em que lida com um cardeal ciumento, Leone (Leo McKern, 1920-2002), que se frustra quando percebe a afinidade do Papa pelo padre progressista e condenado, já que Telemond sofre de uma doença incurável e pode morrer a qualquer momento.

Kiril tenta acudir o Padre Telemond, que sofre um mal súbito.
O Roteirista John Patrick
Morris West, o autor do romance As Sandálias do Pescador, um dos Best-Sellers mais vendidos de todos os tempos.
O adaptador do romance para o cinema, John Patrick (1905-1995), o mesmo roteirista de Casa de Chá ao Luar de Agosto, atualizou o enredo original de Morris West, principalmente quando se trata ao conteúdo das tensões internacionais, diferentes entre 1962 a 1968, ou seja, entre o tempo em que o livro foi escrito e o tempo em que o filme produzido. O filme foi realizado em 1968 durante o papado de Paulo VI (1897-1978), e o livro de West foi publicado durante o papado de João XXIII (1881-1963), sendo que este abriu o Concílio Vaticano II em 1962, que deu novas diretrizes para a Igreja, mas concluída durante a gestão de seu sucessor, Paulo VI. Em face deste momento de transição para a História da Igreja Católica, Patrick precisou mexer na obra original de West.


O Papa Kiril em uma reunião com seus cardeais.
Papa Kiril, vivido por Anthony Quinn, em uma magistral interpretação.
O australiano Morris West, falecido em 1999, foi um escritor prolífero que escreveu mais de 25 livros, além de peças de teatro e programas de rádio, e ele mesmo se encarregou de retocar suas investidas nos bastidores da Cúria Romana em obras subsequentes, como o famoso Advogado do Diabo (publicado em 1959), além de Os Fantoches de Deus (publicado em 1981), e seu último romance, A Última Confissão (publicado após sua morte, em 2000). Na verdade, West revela seus interesses no catolicismo romano, falando inclusive de muitos papas, e revela também um interesse na política internacional. Afinal, o próprio escritor foi um ex-seminarista, passando 12 anos de sua vida em um mosteiro, mas não chegou a se ordenar padre. Como jornalista, foi correspondente do jornal London Daily Mail durante alguns meses, testemunhando o suficiente para aguçar suas preocupações com o poder político e a Igreja, e o papel de ambos na segurança de um mundo mais organizado e pacifista, ameaçado pelo Apocalipse nuclear.

O Papa Kiril, com uma grande carga sobre os ombros.
Resolver pacificamente o conflito entre a União Soviética e a China.
O Cardeal Rinaldi (Vittorio De Sica) e o Papa Kiril (Anthony Quinn)
Entretanto, a superprodução, bem requintada e caprichada, fica datada quando Kiril se envolve em negociação política com a União Soviética e a China para propor a paz, algo que fazia de fato muito sentido na década de 1960, mas hoje parece soar ridícula e ultrapassada. Apesar de todo o primor e requinte da produção, As Sandálias do Pescador não fez tanto sucesso quanto o romance homônimo de West, mas ainda assim vale como curiosidade e pela atuação de grandes atores no elenco, liderado pelo notável Anthony Quinn.

Divulgação

Divulgação de um jornal carioca, em 1968, com o filme em exibição no extinto Metro Boavista, na Rua do Passeio, centro do RJ.
Dirigido por Michael Anderson (1920-2018) de A Volta ao Mundo em 80 Dias (1956), ainda despontam no elenco, Vittorio de Sica (1901-1974), Arnoldo Foà (1916-2014), e Frank Finlay (1926-2016). As Sandálias do Pescador ainda teve duas indicações ao Oscar, para a direção de arte e para a trilha sonora, de autoria de Alex North (1910-1991), um dos grandes Mestres das trilhas de cinema, que compôs para Spartacus(1960), e Agonia e Êxtase (1965).




AS SANDÁLIAS DO PESCADOR

(The Shoes of 

Fisherman)

Ano de Produção: 1968

País– Estados Unidos e Itália

Gênero - Drama

Direção -  Michael Anderson
Produção: George Englund, em produção e distribuição da Metro-Goldwyn-Mayer

Roteiro: John Patrick e James Kennaway,

Baseado no romance homônimo de Morris West.

Fotografia: Erwin Hillier (Em cores)

Música: Alex North

Metragem: 162 minutos

ELENCO

Anthony Quinn (Kiril Lakota)

Laurence Olivier (Piotr Ilyich Kamenev)

Oskar Werner (Padre David Telemond)

David Janssen (George Faber)

Vittorio De Sica (Cardeal Rinaldi)

Leo McKern (Cardeal Leone)

John Gielgud (Papa Elder)

Barbara Jefford (Drª Ruth Faber)

Rosemary Dexter (Chiara)

Arnoldo Foà (Gelásio)

Frank Finlay (Igor Bounin) 

Clive Revill (Tovarich Vucovich)

domingo, 12 de novembro de 2023

O Assassinato de Um Presidente (1973): O Plano para Matar JFK Segundo Dalton Trumbo e Mark Lane




O roteirista Dalton Trumbo (1905-1976), uma das vítimas do Caça as Bruxas do Macartismo, escreveu O ASSASSINATO DE UM PRESIDENTE (Executive Action), obra política produzida em 1973, que buscou ser uma especulação plausível sobre os fatos secretos e um tanto misteriosos que desencadearam o tiroteio da Praça Dealey de Dallas, ao meio dia e meia do dia 22 de novembro de 1963, o cenário do assassinato do Presidente dos Estados Unidos John Fitzgerald Kennedy (1917-1963).


Segundo a versão de Trumbo, um grupo de ricos industriais e autoridades de extrema direita, compostas por Burt Lancaster (1913-1994), Robert Ryan (1909-1973), e Will Geer (1902-1978), planejaram e executaram o atentado, com a meticulosidade e a frieza de uma operação científica. Aliás, como diz literalmente o título original, orquestraram uma Ação Executiva. Vale destacar que os brilhantes Lancaster, Ryan e Geer eram, na vida real, artistas filiados ao Partido Democrata Americano, totalmente oposto aos personagens que interpretam.

Burt Lancaster é James Farrington, líder de uma conspiração para matar JFK

Will Geer como Harold Ferguson

Robert Ryan é Foster, o segundo em comando na operação. 

O tropismo pela violência é denunciado por Trumbo como um processo maligno no seio da história americana, embora venha a tratar, é claro, de mera hipótese ficcional com base em dados e dúvidas da realidade concreta. E a película busca revelar os desencantos da América contemporânea do mesmo modo que Trumbo traçou em Sua última façanha, estrelado por Kirk Douglas e produzida em 1963, um magnifico western moderno que ele escreveu para David Miller (1909-1992) e Edward Lewis, respectivamente diretor e produtor desta fita e que viriam a desempenhar as mesmas funções em  O Assassinato de um Presidente.

Seria Lee Harvey Oswald o verdadeiro assassino de JFK? 
 
O presidente John Kennedy, ao lado da esposa Jacqueline, em um de seus últimos registros

Não deixa de ser impressionante a liberdade de expressão que permitiu a confecção de uma obra como esta, investindo ostensivamente contra as verdades estabelecidas pelo Comitê Warren e oficializadas pelo governo de Washington. Um dos argumentistas do filme, Mark Lane, lançou em 1966 o livro  Rush to Judgment, famoso Best Seller da época que defendeu a tese que que Kennedy foi alvejado por três tiros desfechados por franco-atiradores e não como reza o relatório de Warren, que Lee Harvey Oswald (1939-1963) teria sido demiúrgico e inocente bode expiatório para uma conspiração armada por um complexo industrial militar no reacionário meio sulista, e insatisfeito com o risco de uma dinastia Kennedy na Casa Branca, e com medidas inquietantes do presidente americano.

John Fitzgerald Kennedy

Foster (Robert Ryan) e Farrington (Burt Lancaster) planejando a "Ação Executiva".

Tais medidas apontavam o tratado de interdição de testes atômicos, projeto de remoção de tropas do Vietnã, e a integração racial. O livro de Mark foi transformado em documentário homônimo, realizado em 1967 por Emile de Antonio (1919-1989), e com texto e narração do próprio Lane. Logo, O Assassinato de um Presidente é um similar ficcional do livro Rush to Judgment, de Mark Lane (1927-2016).

O ASSASSINATO DE UM PRESIDENTE (1973) foi o último trabalho de Robert Ryan para o cinema. Ele morreria pouco depois de concluídas as filmagens, a 11 de julho de 1973.

Lancaster (Farrington) e Ryan (Foster): Amigos na vida real e ambos do Partido Democrata Norte-Americano.

Também imaginando um complô contra o presidente Kennedy, mas sem derramamento de sangue, Sete dias de Maio foi produzido pelo mesmo Edward Lewis (1919-2019) e com o mesmo ator Lancaster (junto a Kirk Douglas), mas curiosamente, a morte de John Kennedy obrigou Lewis, na ocasião, a protelar por alguns meses o lançamento do filme. Dez anos depois, O Assassinato de um Presidente, de 1973 trouxe as telas o último desempenho do notável ator Robert Ryan, que mesmo doente, já havia feito cinco filmes num curto espaço em seus últimos três anos de vida. Ator de envergadura e talento, Ryan brilhou no cinema até seu último suspiro, falecendo a 11 de julho de 1973, em Nova York.

Lancaster e Ed Lauter

O excelente Ed Lauter é o chefe que comanda a execução
 
Para estes homens, não pode haver falhas!

Com O Assassinato de um Presidente, Mark Lane estava ressurgindo com outra ficção política, tirando essa ou aquela suposição mais que discutível (como a mobilização de um sósia para incriminar Oswald, ligando seu nome peculiarmente a atividades subversivas) e a ausência de documentos disponíveis (faz falta o filme de 8 mm do alfaiate Abraham Zaprudor, decisivo para demonstrar que os disparos partiram também da frente da limusine presidencial). A versão aqui apresentada procura preencher as falhas do Relatório Warren, considerando não um, mas três franco-atiradores. E sem dúvida, concretiza na tela o pensamento da maioria dos espectadores que nunca aceitaram a versão oficial do crime em Dallas.

James MacColl interpreta um sósia de Lee Harvey Oswald

Robert Ryan e Burt Lancaster

Em particular, causam impacto dois letreiros inseridos a título de informação complementar. O primeiro, na introdução da fita: Antes de sua morte, o Presidente Lyndon Johnson deu entrevista filmada de três horas à TV, em 2 de maio de 1970. Quando transmitida em rede nacional nos EUA, incluía mensagens de que certas partes tinham sido suprimidas à pedido do Presidente Johnson. Foi revelado que na parte censurada da entrevista, Johnson tinha demonstrado apreensão a respeito da afirmação de que Lee Harvey Oswald teria agido sozinho, e de que de fato, ele suspeitava de que teria havido uma conspiração no assassinato de John F Kennedy.

Will Geer

E o filme se encerra com outro letreiro: Nos três anos que se sucederam aos assassinatos de JFK e Lee Harvey Oswald, 18 testemunhas materiais morreram. Seis foram mortas a tiros, três em acidentes de carro, duas suicidaram-se, uma foi degolada, uma foi morta a golpe de Karatê no pescoço, três de ataque cardíaco, e duas de causas naturais. Um relatório feito pelo “London Sunday Times” concluiu que, no dia 22 de novembro de 1963, as chances dessas testemunhas estarem mortas até fevereiro de 1967, eram de 160 mil trilhões, para uma.

Passados exatos 50 anos de sua realização, O ASSASSINATO DE UM PRESIDENTE ainda influencia o espectador a uma opinião quanto à trama conspirativa sobre a morte de JFK, aliás, diversos filmes e livros ainda exploram muito bem sobre o tema.





O ASSASSINATO DE 

UM PRESIDENTE

(Executive Action)


Ano de Produção: 1973

País: EUA

Gênero: Drama Político

Direção: David Miller

Produção: Edward Lewis e Steve Jaffe para a Warner Bross

Roteiro: Dalton Trumbo. com base em história de Mark Lane

Fotografia: Robert Steadman (cores)

Trilha Sonora: Randy Edelman

Metragem: 91 minutos

ELENCO

Burt Lancaster- James Farrington

Robert Ryan    - Robert Foster

Will Geer    - Harold Ferguson

Ed Lauter    - Chefe de Operação

John Anderson –Halliday

Walter Brooke- Smythe

Paul Carr    -Atirador1

Colby Chester- Atirador 2

John Brascias – Atirador 3

Richard Bull – Atirador 4

Lee Delano - Atirador 5

Graydon Gould – Comentarista da TV

Rick Hurst – Vendedor de Carros Usados

Robert Karnes – Homem com o Rifle Ranger

Sandy Ward – Policial

James MacColl – Sósia de Lee Harvey Oswald

William Watson – Técnico dos Atiradores


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Queimada (1969): Marlon Brando e o Conflito entre Colonizadores e Colonizados, em Fascinante Épico Didático dirigido por Gillo Pontecorvo.


Dez Anos podem ser suficientes para revelar as contradições de um século inteiro.

Esta frase é de Sir William Walker, protagonista interpretado por Marlon Brando (1924-2004) no alegórico e surpreendente QUEIMADA (Burn!), do cineasta italiano Gillo Pontecorvo (1919-2006). Sir Walker tem suas razões para pensar de tal forma ao longo da exibição deste fascinante épico didático, afinal, ninguém melhor do que o personagem para entender estas mesmas contradições.

O cineasta italiano Gillo Pontecorvo.
O diretor Gillo Pontecorvo e seu astro Marlon Brando, no set de QUEIMADA (1969).

Tudo começa em 1815 quando o agente inglês Sir William Walker (Brando) chega a ilha de Queimada (uma fictícia ilha na costa da Venezuela) como contratado do governo britânico. Na ilha, ele encontra uma população negra de 200.000 habitantes sendo espoliada a um regime de ferro e fogo por uma minoria branca de 5.000 colonizadores portugueses.  Walker foi enviado justamente como interventor com o objetivo de expulsar os portugueses da ilha, e tomar Queimada por meios menos violento quanto possível para satisfazer a Inglaterra. Uma vez enviado pela Coroa Britânica para acabar de vez com o domínio português dentro da ilha, Walker descobre resistência contra os opressores na liderança do negro José Dolores (Evaristo Márquez, 1939-2013). O agente inglês incentiva a capacidade e o talento de liderança de Dolores, e através dele fomenta uma revolta contra os colonizadores. Para derrotar os nativos, os portugueses queimaram a ilha de ponta a ponta, mas por fim, acabam sendo derrotados pelos colonizados.

Marlon Brando é Sir William Walker, um agente a serviço da Coroa Britânica.
Evaristo Márquez é José Dolores, lider da resistência contra os portugueses na ilha de Queimada.
Sir William Walker (Marlon Brando) reconhece o potencial de Dolores (Evaristo Márquez) na liderança para a independência da ilha.
Vitoriosa a revolução, com José Dolores no Poder, Queimada passa a ser independente.  Com o dever cumprido, Walker volta para a Inglaterra. Entretanto, tempos depois, Queimada passa a ser manobrada por uma empresa britânica importadora de cana de açúcar. Dez anos depois, em 1825, Sir William Walker retorna a Queimada, desta vez a serviço de uma companhia açucareira britânica, para liderar a opressão dos colonizadores ingleses contra a luta libertária de Jose Dolores, o mesmo homem que o agente inglês engendrou como herói na revolução da ilha. Walker terá que enfrentar seus antigos companheiros de luta de independência de Queimada, agora empenhados em combater o domínio econômico britânico que Walker agora se dispõe a servir. Para Dolores, a luta agora é contra a política econômica promovida pelos ingleses. Oscilando entre sua própria destruição moral e compulsiva e o arrependimento sufocante, a então força motriz representada até aquele momento por William Walker tem, por fim, sua verdadeira face corrompida e desmascarada.

Sir William Walker e seu amigo Teddy Sanchez (Renato Salvatori)
Sanchez e outros empreendedores interessados em manter o domínio econômico britânico na ilha...
mas para isso, recorrem a Sir William Walker, disposto a combater Jose Dolores e seus aliados. 
Segundo o diretor Pontecorvo, a trama é um processo de contradições, uma dialética irreprimível, tendo Walker um tipo pragmático que coloca sua lógica implacável na causa daqueles que podem renumera-lo bem, onde o outro lado não pode compreender a inevitabilidade desse processo. É José Dolores que resume nas suas ações e nos seus pensamentos o alegórico do jogo colonialista profundamente analisado em toda a fita. Um estudo realizado com análise rigorosa, clareza ideológica e exata comunicabilidade dramática, segundo o saudoso crítico de cinema brasileiro Paulo Perdigão.

Walker agora combate Dolores, o homem que um dia o engendrou como um herói.

William Walker, oscilando entre sua própria destruição moral e compulsiva e o arrependimento sufocante

Gillo Pontecorvo pensou em filmar seu épico político na Espanha com o título de Quemada (sem o “i”), pois a ação se desenrolava originalmente numa possessão espanhola. Durante sua montagem, ocorreram alguns problemas na Angola portuguesa e o cineasta alterou os títulos e os diálogos nativos, entretanto, as circunstâncias não alteraram o sentido político da trama. As filmagens foram feitas na Colômbia, Venezuela, e no Marrocos. Tal qual como fizera em um de seus mais prestigiados trabalhos, A Batalha da Argélia (La battaglia di Algeri, 1966), Pontecorvo como bem dizia, combinava aventuras românticas somadas ao cinema de ideias, na certeza que a política não implicava necessariamente em aversão ao glamour do espetáculo e nem excluía a necessidade de uma linguagem dramática mais convencional. 


Divulgação

William Walker na caça a Jose Dolores
Capturado, Dolores, seguindo sua integridade, não aceita as gentilezas de Walker.
Pode-se objetar em nossos dias ao revisitar hoje esta obra prima quanto à esquematização dos elementos em conflito – os brancos excessivamente vilanescos e os negros sempre simpáticos – mas Pontecorvo sabia que para estampar uma tese política sem subterfúgios e nem exclamações panfletárias, os argumentos devem ser revestidos de definição didática.  A menos que se queira endereçar a uma minoria de indiciados uma película que, na verdade, eles nem teriam necessidade de assistir, Queimada é modelo de cinema político. Durante as filmagens, Brando e Pontecorvo se desentenderam por diversas vezes, atrasando por meses a produção.  O ator (em seu 25º filme), se queixava do calor da Venezuela, da incomodidade, e por duas vezes abandonou o set sem deixar endereço. Precisou do pessoal da equipe técnica para ir até o aeroporto de Maiquetia brandindo cartazes com dizeres Volte, Marlon, para que o ator terminasse as filmagens.

Divulgação

Brando e Evaristo Márquez: duelo no campo das interpretações.

QUEIMADA demonstra de forma objetiva e brilhante que é possível se fazer cinema político sem que se apele para o panfleto inócuo, evitando improvisações ingênuas e inconsequentes. Com clareza ideológica, sentido do espetáculo épico e comunicativo, Gillo Pontecorvo fez um inventário alegórico do jogo colonialista através da História. Alguns críticos podem classificar um dos pontos altos do filme como um grave defeito: o esquematismo de uma estrutura altamente informativa, mas às vezes, simplista, como se o conflito entre os colonizadores e os colonizados fosse uma luta entre o bem e o mal. Brando e o ator colombiano (já falecido) Evaristo Márquez, respectivamente colonizador e colonizado, se enfrentam também no campo das interpretações, sendo que o último, mesmo sem experiência cinematográfica (só fez mais quatro filmes no início dos anos 1970) consegue por vezes uma dimensão muito mais trágica que a do próprio experiente intérprete de O Selvagem (The Wild One, 1953) e O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972). Destaque para a trilha sonora de Ennio Morricone (1928-2020), e pela fotografia de Giuseppe Ruzzolini (1930-2007) e Marcello Gatti (1924-2013). 

Gillo Pontecorvo e Marlon Brando: discussões durante as filmagens.
Divulgação de Cinema

Queimada foi exibido nos cinemas brasileiros em maio de 1971, depois foi proibido pela censura durante dez anos. Em 1983 foi exibido pela primeira vez na TV.

Cine Odeon

Divulgação do filme nos jornais cariocas.




QUEIMADA

(Burn!)

Ano de Produção: 1969
Direção: Gillo Pontecorvo
País: Itália – França
Gênero: Drama Político/Histórico
Roteiro: Franco Solinas, e Giorgio Arlorio, baseado em história de Gillo Pontecorvo.
Produção: Alberto Grimaldi, para United Artists
Música: Ennio Morricone
Fotografia: Marcello Gatti e Giuseppe Ruzzolini, em Cores.
Metragem: 108 minutos (edição em DVD) – 132 minutos (versão restaurada).

 
Elenco
Marlon Brando em QUEIMADA (1969)

Marlon Brando – Sir William Walker
Evaristo Márquez – Jose Dolores
Renato Salvatori – Teddy Sanchez
Dana Ghia – Francesca
Valeria Ferran Wanani – Guarina
Giampiero Albertini – Henry Thompson
Carlo Palmucci – Jack
    Norman Hill- Shelton
Turam Quibo- Juanito
Álvaro Medrano – Soldie
Alejandro Obregón – Major



Um Convidado Bem Trapalhão (1968): Blake Edwards faz Peter Sellers promover uma festa de arromba!

UM CONVIDADO BEM TRAPALHÃO ( The Party ) , produzido em 1968, é considerada a comédia mais hilariante do eterno Peter Sellers (1925-19...