Dez Anos podem ser
suficientes para revelar as contradições de um século inteiro.
Esta frase é de Sir William Walker, protagonista interpretado
por Marlon Brando (1924-2004) no alegórico e surpreendente QUEIMADA (Burn!), do
cineasta italiano Gillo Pontecorvo (1919-2006). Sir Walker tem suas razões para
pensar de tal forma ao longo da exibição deste fascinante épico didático, afinal,
ninguém melhor do que o personagem para entender estas mesmas contradições.
O cineasta italiano Gillo Pontecorvo. |
O diretor Gillo Pontecorvo e seu astro Marlon Brando, no set de QUEIMADA (1969).
Tudo
começa em 1815 quando o agente inglês Sir William Walker (Brando) chega a ilha
de Queimada (uma fictícia ilha na costa da Venezuela) como contratado do
governo britânico. Na ilha, ele encontra uma população negra de 200.000
habitantes sendo espoliada a um regime de ferro e fogo por uma minoria branca
de 5.000 colonizadores portugueses.
Walker foi enviado justamente como interventor com o objetivo de expulsar os portugueses da ilha, e tomar Queimada por meios menos
violento quanto possível para satisfazer a Inglaterra. Uma vez enviado pela Coroa Britânica
para acabar de vez com o domínio português dentro da ilha, Walker descobre
resistência contra os opressores na liderança do negro José Dolores (Evaristo
Márquez, 1939-2013). O agente inglês incentiva a capacidade e o talento de liderança
de Dolores, e através dele fomenta uma revolta contra os colonizadores. Para
derrotar os nativos, os portugueses queimaram a ilha de ponta a ponta, mas por
fim, acabam sendo derrotados pelos colonizados. |
Marlon Brando é Sir William Walker, um agente a serviço da Coroa Britânica. |
Evaristo Márquez é José Dolores, lider da resistência contra os portugueses na ilha de Queimada. |
Sir William Walker (Marlon Brando) reconhece o potencial de Dolores (Evaristo Márquez) na liderança para a independência da ilha. |
Vitoriosa
a revolução, com José Dolores no Poder, Queimada passa a ser independente. Com o dever cumprido, Walker volta para a
Inglaterra. Entretanto, tempos depois, Queimada passa a ser manobrada por uma
empresa britânica importadora de cana de açúcar. Dez anos depois, em 1825, Sir
William Walker retorna a Queimada, desta vez a serviço de uma companhia
açucareira britânica, para liderar a opressão dos colonizadores ingleses contra
a luta libertária de Jose Dolores, o mesmo homem que o agente inglês engendrou
como herói na revolução da ilha. Walker terá que enfrentar seus antigos
companheiros de luta de independência de Queimada, agora empenhados em combater
o domínio econômico britânico que Walker agora se dispõe a servir. Para Dolores, a luta agora é contra a política econômica promovida pelos ingleses. Oscilando
entre sua própria destruição moral e compulsiva e o arrependimento sufocante, a
então força motriz representada até aquele momento por William Walker tem, por fim, sua verdadeira face corrompida e desmascarada.
Sir William Walker e seu amigo Teddy Sanchez (Renato Salvatori) |
Sanchez e outros empreendedores interessados em manter o domínio econômico britânico na ilha... |
mas para isso, recorrem a Sir William Walker, disposto a combater Jose Dolores e seus aliados.
Segundo
o diretor Pontecorvo, a trama é um processo de contradições, uma dialética
irreprimível, tendo Walker um tipo pragmático que coloca sua lógica implacável
na causa daqueles que podem renumera-lo bem, onde o outro lado não pode
compreender a inevitabilidade desse processo. É José Dolores que resume nas
suas ações e nos seus pensamentos o alegórico do jogo colonialista
profundamente analisado em toda a fita. Um estudo realizado com análise
rigorosa, clareza ideológica e exata comunicabilidade dramática, segundo o saudoso crítico de cinema brasileiro Paulo Perdigão. |
Walker agora combate Dolores, o homem que um dia o engendrou como um herói. |
William Walker, oscilando entre sua própria destruição moral e compulsiva e o arrependimento sufocante |
Gillo
Pontecorvo pensou em filmar seu épico político na Espanha com o título de Quemada (sem o “i”), pois a ação se
desenrolava originalmente numa possessão espanhola. Durante sua montagem, ocorreram alguns
problemas na Angola portuguesa e o cineasta alterou os títulos e os diálogos
nativos, entretanto, as circunstâncias não alteraram o sentido político da
trama. As filmagens foram feitas na Colômbia, Venezuela, e no Marrocos. Tal qual como
fizera em um de seus mais prestigiados trabalhos, A Batalha da Argélia (La
battaglia di Algeri, 1966), Pontecorvo como bem dizia, combinava aventuras românticas somadas ao cinema de
ideias, na certeza que a política não implicava necessariamente em aversão
ao glamour do espetáculo e nem excluía a necessidade de uma linguagem dramática
mais convencional.
Divulgação |
William Walker na caça a Jose Dolores |
Capturado, Dolores, seguindo sua integridade, não aceita as gentilezas de Walker. |
Pode-se objetar em nossos dias ao revisitar hoje esta obra
prima quanto à esquematização dos elementos em conflito – os brancos
excessivamente vilanescos e os negros sempre simpáticos – mas Pontecorvo sabia
que para estampar uma tese política sem subterfúgios e nem exclamações
panfletárias, os argumentos devem ser revestidos de definição didática. A menos que se queira endereçar a uma minoria
de indiciados uma película que, na verdade, eles nem teriam necessidade de
assistir, Queimada é modelo de cinema
político. Durante as filmagens, Brando e Pontecorvo se desentenderam por
diversas vezes, atrasando por meses a produção. O ator (em seu 25º filme), se queixava do
calor da Venezuela, da incomodidade, e por duas vezes abandonou o set sem
deixar endereço. Precisou do pessoal da equipe técnica para ir até o aeroporto
de Maiquetia brandindo cartazes com dizeres Volte,
Marlon, para que o ator terminasse as filmagens.
Divulgação |
Brando e Evaristo Márquez: duelo no campo das interpretações. |
QUEIMADA
demonstra
de forma objetiva e brilhante que é possível se fazer cinema político sem que
se apele para o panfleto inócuo, evitando improvisações ingênuas e
inconsequentes. Com clareza ideológica, sentido do espetáculo épico e
comunicativo, Gillo Pontecorvo fez um inventário alegórico do jogo colonialista
através da História. Alguns críticos podem classificar um dos pontos altos do
filme como um grave defeito: o esquematismo de uma estrutura altamente
informativa, mas às vezes, simplista, como se o conflito entre os colonizadores
e os colonizados fosse uma luta entre o bem e o mal. Brando e o ator colombiano
(já falecido) Evaristo Márquez, respectivamente colonizador e colonizado, se
enfrentam também no campo das interpretações, sendo que o último, mesmo sem
experiência cinematográfica (só fez mais quatro filmes no início dos anos 1970)
consegue por vezes uma dimensão muito mais trágica que a do próprio experiente intérprete
de O Selvagem (The Wild One, 1953) e O
Poderoso Chefão (The Godfather,
1972). Destaque para a trilha sonora de Ennio Morricone (1928-2020), e pela fotografia de Giuseppe
Ruzzolini (1930-2007) e Marcello Gatti (1924-2013).
Gillo Pontecorvo e Marlon Brando: discussões durante as filmagens. |
Queimada foi exibido nos cinemas brasileiros
em maio de 1971, depois foi proibido pela censura durante dez anos. Em 1983 foi
exibido pela primeira vez na TV.
Cine Odeon |
Divulgação do filme nos jornais cariocas. |
QUEIMADA
(Burn!)
Ano
de Produção: 1969
Direção:
Gillo Pontecorvo
País:
Itália – França
Gênero:
Drama Político/Histórico
Roteiro: Franco
Solinas, e Giorgio Arlorio, baseado em história de Gillo Pontecorvo.
Produção:
Alberto Grimaldi, para United Artists
Música:
Ennio Morricone
Fotografia:
Marcello Gatti e Giuseppe Ruzzolini, em Cores.
Metragem:
108 minutos (edição em DVD) – 132 minutos (versão restaurada).
Elenco
Marlon Brando em QUEIMADA (1969) |
Marlon Brando – Sir William
Walker
Evaristo
Márquez – Jose Dolores
Renato
Salvatori – Teddy Sanchez
Dana
Ghia – Francesca
Valeria
Ferran Wanani – Guarina
Giampiero
Albertini – Henry Thompson
Carlo
Palmucci – Jack
Norman Hill- Shelton
Turam
Quibo- Juanito
Álvaro
Medrano – Soldie
Alejandro
Obregón – Major
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